[ Na Rede - parte 1 ]

(textos)

por Christine Mello

Ao fluxo quantitativo das mensagens utilitárias econfortantes que trafegam diariamente nos canais
majoritários da mídia a arte responde com
a incerteza, a indeterminação e o desconforto existencial1.
Arlindo Machado

A contemporaneidade instaura novos paradigmas nas artes a partir das possibilidades introduzidas pelas redes de comunicação. A cultura movida pelas mídias proporciona uma geração de artistas interessada nas linguagens numéricas e nos recursos oferecidos pelos meios digitais interativos e pelas telecomunicações.

Preocupam-se com as transformações políticas e sociais estabelecidas a partir disso, criam mediações simbólicas e pesquisam novos significados para o trabalho artístico e sua forma de recepção. Relacionam-se de maneira ativa com o meio tecnológico, agenciando o instrumento: não mais aceitam o modo contemplativo e participativo atribuído anteriormente ao meio eletrônico. Uma arte aberta, efêmera, descontínua. Fluida pela mídia.
Deslocalizar

Pensar na arte da rede implica não só pensar nos trabalhos que intervêem nos fluxos informacionais, mas também em seus proponentes e no modo como refletem a grande rede que é hoje a cidade contemporânea. Mapas de percursos imprevisíveis são situações muito mais relacionadas ao movimento do que aos lugares2. Como o viajante do labirinto, perde-se a visão global e panorâmica do espaço total a ser percorrido3 e é só por intermédio da experiência vivida que se recuperam os sentidos.

O contexto de trabalho é a rede e o conteúdo, o modo como a obra é construída nesse ambiente virtual. O artista se firma como provedor de conteúdo e sua ação denota uma performance coletiva. Ele não está isolado no processo criativo, é na co-presença e na troca com o outro que a obra se realiza. Deslocamentos da autoria, trânsitos contínuos. O conteúdo não é o que se coloca na composição, mas sim o modo como se prepara o sistema4. O sistema identificado como o conjunto das relações de diferenças e semelhanças, e o processo, como o conjunto de agenciamentos dos elementos selecionados5. O sistema passa a ser a construção, e a obra, uma prática viva.

Ruas, viadutos, transeuntes e grandes anéis viários: links, interfaces, arquivos e servidores. A rede torna-se a própria metáfora da cidade: reproduz no microcosmo informacional a cena urbana, com todas as suas qualidades e infinitos problemas. Ao problema insolúvel dos engarrafamentos, a cidade virtual propõe como solução a banda larga, logo saturada também com o aumento exponencial dos sites e dos acessos. A cidade da informação mantém sua velocidade e seu fluxo na proliferação de avenidas invisíveis, no transporte de mensagens via fibra ótica, fios de cobre e cabos6.

Ao problema do espaço na metrópole opõe-se, na rede, o problema do tempo: como percorrer todas as informações que interessam, se o tempo necessário é maior do que o que podemos dispor? Como indica Paul Virilio, trata-se de um tempo desvinculado do tempo cronológico, caracterizado por ações simultâneas, o tempo das dias7. É necessário saber os atalhos, fazer expedições, usar a experiência humana e os mecanismos de busca para as investigações. Como uma poética dos fluxos ininterruptos, a recepção da obra flui num ambiente altamente dispersivo, um organismo de relações hipermidiáticas, on-line 24 horas por dia. A ação artística se realiza em um espaço descontínuo, sem volume, e o tempo revela-se sob a forma de ubiqüidade. O trabalho organiza-se em comunidade e em escala mundial, e é calcado em termos de trocas e simultaneidade. Uma esfera global, interligada e pública. Wired city, como já pensava Vilém Flusser8.

Arte na rede pressupõe, assim, estratégias formais de presentificação do tempo de forma compartilhada, inseridas no contexto da arte telemática. Procedimentos vivenciados também na fax arte, slow-scan TV (televisão de varredura lenta), videotexto, ligações telemáticas, televisão interativa via satélite ou na telepresença. Bem como em muitas das estratégias já conhecidas pela mail art9. Supõe conhecer propostas experimentais, que dialogam com as relações arte/vida e homem/máquina/espaço.

Os trabalhos artísticos nesse meio são não-objetos, não-locais, em constante transformação. Integram uma tradição nas artes, desenvolvida ao longo do século XX e iniciada pelo futurismo — em que se procurava captar a velocidade, a energia e as contradições da vida contemporânea, assim como buscava um tipo de arte que pudesse ter um efeito totalizante10, interdisciplinar. Relacionam-se também em torno à desmaterialização do objeto artístico e à geração de narrativas-limites. Gestos radicais, como os empreendidos por Marinetti, Giacomo Balla, John Cage, Allan Kaprow, Nam June Paik, Roy Ascott, Jeffrey Shaw e Jodi (Joan Heemskerk e Dirk Paesmans), entre tantos outros.

Ambientes desterritorializados e presentificados on-line. Encontramos mudanças no processo da criação artística, no modo de articular as relações de autoria e na maneira como se propõem novas formas de estabelecer conexões em plena era da informação. Uma escritura das interfaces, não-linear e em tempo presente. Uma escritura compartilhada.

Fluir

Apresentamos trabalhos sob o domínio de espaços fluidos, que denotam a dissolução das fronteiras nas artes: em sua maioria produzidos em equipes e que se realizam a partir da co-autoria do usuário. Obras em processo, exploram as múltiplas relações e as marcas de transgressão poética — ou zonas fronteiriças — proporcionadas pelas híbridas linguagens, códigos de programação, dispositivos interativos, simuladores, interfaces gráficas e sonoras, web cams, ambientes colaborativos em tempo real e sistemas abertos de navegação no ciberespaço.

Em Ceci n'est pas un nike (www.desvirtual.com/nike), Giselle Beiguelman parte da imagem de um tênis Nike - extraída da própria Internet - e a confronta com o cachimbo de Magritte. É a dinâmica das discussões em torno ao que é a representação na rede que a interessa. Propicia uma situação-limite entre o que é superfície (site/nike) e o que é interface. Ao compartilharmos seu jogo poético, permite que o nosso próprio texto se insira ao trabalho, criando um grande palimpsesto coletivo, assim como um exercício de desfonetização da linguagem. Jogos novos também são possibilitados pelo uso de telefones celulares como mídia complementar, gerando simultaneidades entre website e wapsite.

Artur Matuck, um pioneiro no uso de redes e propostas colaborativas, cria em Literaterra/Landscript (http://bienalsaopaulo.terra.com.br/teksto), uma máquina datilográfica desregulada, que de-escreve textos, frases e palavras, substituindo letras e criando recombinações semi-ramdômicas. Uma máquina geradora e coletora de neologismos para expressar novas palavras e novos significados. Seu trabalho luta com os códigos moles do programa e permite que cada um de nós seja também um desescritor.

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